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A psicanálise persiste?

O desenvolvimento e amadurecimento da neurociência nos últimos anos, sob a luz de um intenso aprimoramento tecnológico, tem alimentado a antiga discussão sobre a existência da mente como uma entidade separada, ou não, do cérebro e de outras estruturas que compõem o sistema nervoso central. Não é de hoje que estudiosos de diversas áreas relacionadas ao tema debatem esta questão, seguindo linhas distintas de raciocínio. O Dualismo propõe que a existência da mente seja paralela e, em grande parte, independente dos fenômenos fisiológicos que têm lugar no tecido neural. Por outro lado, o Monismo defende a idéia de que a mente seja um produto da atividade cerebral, em suas complexas funções e interações com o mundo externo, e tem ganhado particular importância em nossa época, sobretudo porque os novos conhecimentos em neurociência têm estruturado robustas explicações fisiológicas para fenômenos da psique e do comportamento, além de elucidarem, com o auxílio da genética e da biologia molecular, as bases orgânicas de diversos transtornos mentais.

O impacto atual mais drástico do fortalecimento da neurociência, no embate entre mente e cérebro, é que a psicanálise, como ciência, tem sido colocada em cheque por alguns estudiosos. O pensamento mais organicista alega que a neurociência suplantará, muito em breve, a psicanálise em seus campos de atuação. Há, no entanto, quem discorde. De qualquer maneira, acredito que esta questão, por sua complexidade, não possa se esgotar tão facilmente e trago aqui algumas colocações que podem ser levadas em conta para que se tome um eventual posicionamento dentro desta disputa.

A psicanálise surgiu no século XIX e revolucionou a ciência ao estabelecer e consolidar a idéia do inconsciente, entre outras teorias. Trata-se, contudo, de um modelo. A psicanalise tradicional, de fato, não pode positivar suas teorias de acordo com o método científico: para além da mera observação clínica e julgamento conforme o modelo proposto, não restam comprovações sólidas de tudo aquilo que Freud dizia. A psicanálise comprova-se na prática psicoterapêutica. Por tudo isso, muitos outros modelos (cada vez mais modernos) sucederam-se na ampliação dos conceitos inicialmente propostos por Freud, às vezes refutando-os. A maioria destes modelos enfrenta a mesma limitação: são modelos observacionais e nenhum deles pode ser suficientemente provado ou testado com o mesmo rigor que se aplica em outras ciências.

Não se pode culpar a psicanálise nesse sentido, uma vez que até poucas décadas atrás o funcionamento cerebral era bastante desconhecido, muito embora o cérebro já estivesse “mapeado”.

Além disso, o advento da psicanalise representou um importante tratamento alternativo a diversos transtornos mentais, numa época em que a neurologia e a psiquiatria não dispunham de propostas terapêuticas eficazes.

Quem já leu, por exemplo, as conferências de Freud sobre a neurose obsessiva (que atualmente conhecemos como TOC) consegue entender perfeitamente o motivo pelo qual a psicanalise foi revolucionária: num meio em que pacientes psiquiátricos estavam invariavelmente destinados a ser trancafiados em manicômios, Freud analisou e tratou o comportamento humano, com sucesso, aplicando técnicas que em grande parte se mantêm até hoje.

No entanto, os tempos mudaram. Os avanços em neurociência permitiram à comunidade científica compreender não apenas o funcionamento normal do cérebro, mas também a fisiopatologia de inúmeros transtornos psiquiátricos. Obviamente, isso toca a psicanálise. O cérebro é a sede das funções mentais e seria extremamente irracional pensar que, em vista dos avanços científicos e das novas tecnologias, os conceitos psicanalíticos mais antigos não precisariam ser revistos e novamente ampliados.

Contudo, a psicanálise e até mesmo os modelos psicanalíticos não perdem seu lugar. Principalmente, porque são modelos, isto é, podem continuar a existir e, até mesmo, se modernizar dentro da própria lógica explicativa, que, não custa repetir, é observacional.

O que me chama a atenção e me fascina, sobretudo, é o caráter fundamentalmente abstrato da mente. A finalização superior dos estímulos periféricos (associada a outros estímulos e atividades de outras áreas encefálicas) produz uma sensação complexa à qual damos o nome de consciência. A construção deste “produto” neural requer (sabe-se lá em qual ponto do trajeto) uma completa abstração de algo real e concreto (sinapses, potenciais de ação, etc.), e nisso o cérebro distingue-se por sua função de outros órgãos, por exemplo o estômago, que desempenha seu papel fisiológico sem abandonar a esfera do concreto macro- e microscópico. No caminho da volta, comandos bastante concretos, químicos, que partem do cérebro para estruturas efetoras, não o fazem sem antes deixar o domínio do abstrato: se, neste momento, eu movimentar meu braço, certamente pode-se acompanhar e compreender detalhadamente a natureza e o mecanismo de propagação do estímulo correspondente, desde o córtex motor até o músculo do braço, assim como a ação que ele executa, porque tudo isso é concreto; antes disso, porém, existiu uma vontade de mover o braço e esta vontade pode ter sido completamente espontânea, não responsiva a nada, e sua natureza, em todo caso, será sempre tão abstrata como uma idéia ou como um sentido qualquer que se apresente ao cérebro pelas vias aferentes; a minha impressão é que, mesmo se considerados todos os outros circuitos complexos de tomada de decisão, sempre haverá um “antes”.

É no domínio desta abstração que eu compreendo o trabalho da psicanálise. Isso é relevante, principalmente quando entendemos que sua atuação ocorre frequentemente sobre indivíduos sadios, uma vez que nem todos os sofrimentos, angústias ou comportamentos inadequados decorrem de processos patológicos ou disfuncionais do tecido neural.

Há resultados satisfatórios e importantes da boa prática psicanalítica na lida com os pacientes, assim como da prática de outras linhas da psicologia, cada qual representando seu modelo.

A neurociência provavelmente ditará transformações em muitos aspectos das teorias psicanalíticas mais antigas e promoverá o avanço da psiquiatria no tratamento de transtornos mentais sem o auxílio da psicologia. Nesse contexto, a psicanálise se verá ultrapassada, mas não invalidada, porque a neurociência pode positivar suas descobertas e demonstrá-las com base em metodologia científica rigorosa e experimental.

Contudo, não me parece que a psicanálise, assim como a psicologia analítica e outras linhas da psicologia, ainda que talvez reformuladas por evidências modernas, vão perder seu lugar. O abstrato da mente, mesmo que venha a se mostrar comprovadamente como algo produzido pelo funcionamento neuronal, não deixa de existir de forma abstrata. À parte teorias sobre a gênese psíquica, a psicanálise persiste como técnica eficaz para o tratamento dos sujeitos, uma vez que aborda a abstração mental com ferramentas abstratas, principalmente a palavra. E esta abordagem a que me refiro talvez esteja muito longe de poder ser suplantada em sua totalidade pela neurociência e outras linhas essencialmente organicistas.

Na abordagem dos pacientes com transtornos mentais e psíquicos, entendo que haja possibilidade de enriquecimento com a complementação mutua entre neurociência e psicanálise, e que, nesse sentido, não se possa falar em superação de uma sobre a outra, mas mantenho minha opinião um tanto dualista sobre a natureza psíquica e sua relação com o cérebro, citando a colocação do próprio Freud, em Sobre a concepção das afasias (1891):

“A relação entre a cadeia de processos fisiológicos que se dão no sistema nervoso e os processos mentais provavelmente não é de causa e efeito. Aqueles não cessam quando estes começam; tendem a continuar, porém, a partir de um certo momento, um fenômeno mental corresponde a cada parte da cadeia ou a várias partes. O processo psíquico é, portanto, paralelo ao fisiológico, um concomitante dependente”.

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