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Vaselina e outros produtos fatais da nossa sociedade

Ficamos horrorizados quando erros fatais acontecem. A história trágica do soro fisiológico que foi trocado por vaselina produziu muitos comentários na mídia, nos botecos e nas mesas de jantar. Todos nós temos uma opinião sobre isso. Atribuímos a culpa ao descaso do serviço público (sem atentarmos ao fato de que a Santa Casa é uma instituição particular) e ao sistema único de saúde. Culpamos a assistente de enfermagem por não ter feito seu trabalho com a seriedade adequada. Queremos culpados a qualquer custo. Para que precisamos de culpados? Para reduzir as chances de que aconteça o mesmo conosco, já que, quando for nossa vez, teremos cuidado suficiente para que nenhum desses descasos ocorra? Para quê? Estamos dispostos a nos empenhar para corrigir esses erros?

Para mim a culpa não é de ninguém e é de todos nós. Não estou querendo diluir a culpa para que ninguém possa ser responsabilizado pela morte em questão. Quero apenas que cada um de nós sinta sua parcela de culpa, para que mudanças no comportamento da sociedade comecem a diminuir nosso risco-tragédia.

Na tragédia da escola de Realengo, todos nós estávamos com as mãos naquele gatilho insano. Cada um de nós que não se dá conta de que inocentes brincadeiras podem provocar dores incuráveis em outras pessoas. Cada um de nós que permite que nossos filhos acreditem que existam seres de qualidade variável e que, por isso, o que importa é estar do lado dos ”vencedores” e menosprezar os “perdedores”. Cada um de nós que não dá acesso à educação e saúde de qualidade a todos, porque aceita que pessoas que não são os melhores produtos éticos e intelectuais do país assumam posições decisórias para o futuro de todos nós. E a falta de acesso ao conhecimento nos torna seres vulneráveis ao continuísmo da miséria humana, a miséria dos nossos princípios. O jornalista da CBN que chamou o assassino de psicopata também é culpado, já que dissemina conhecimentos superficiais como é do feitio de alguns jornalistas.

Vejam este caso que não foi parar na primeira página. No final de semana passado, aconteceu em São Paulo a Virada Cultural. Um dos palcos, onde ocorreria o primeiro show, com Rita Lee na abertura do evento, foi montado próximo à Sala São Paulo. Nessa sala, aos finais de semana, concertos tradicionais e obviamente CULTURAIS acontecem e há pessoas que compram ingressos para toda a temporada de espetáculos. No fim-de-semana passado, essas pessoas que transpiram cultura não foram incluídas na programação da Virada Cultural. Algumas senhoras que, tradicionalmente, usam táxis para deixar o teatro, ficaram a pé. O DSV não montou esquema para atender a esse público. Também não houve nenhum aviso sobre essa impossibilidade e em meio ao show da Rita Lee, nenhum táxi pode atender a essas senhoras. Agora, me digam, como iriam voltar pra casa? Deveriam ter saído andando pelo centro e procurado táxi na cracolândia? Dormiriam no palco entre solfejos? Fiquei sabendo do destino de duas delas. Acuadas pela situação sem solução e obviamente constrangidas, foram até o estacionamento e pediram carona para um casal de idosos e também para um casal de jovens. Precisavam de carona só até um ponto de taxi.  Não foram atendidas. Pediram também a uma senhora que estava sozinha no carro. Uma desculpa incoerente foi usada. Um último carro no estacionamento. Nem de longe era um carro importado, nem ao menos novo. Um musicista da orquestra de Heliópolis que fora assistir ao seu professor tocar. O único que teve coragem de dar carona para aquelas ameaçadoras senhoras no estacionamento da Sala São Paulo. Corajoso e intrépito, rompeu a mediocridade que assola o país e levou as senhoras até à Avenida Angélica. Que bom que a sociedade financia a Orquestra Sinfônica de Heliópolis. É uma forma de sentir que alguém investe dinheiro em algo que, mesmo que diminuto, pode ser usado para contrapor a fábrica de tragédias em que nossa sociedade se transformou. Com medo da culpa que todos temos, perdemos chances preciosas de mostrar o que há de humano e potente em nós.

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